Fichamento - Guerra dos Graves: da Quebra de Xangô ao Funk na Baixada Santista
Enquanto as frequências graves do candomblé são emitidas pelo couro do atabaque, nos bailes funk não são poupados esforços para montar paredões de alto-falantes e subwoofers, que garantem a disseminação massiva e tátil dos graves, criando ao seu redor um espaço-tempo de aglutinação.
Tanto o candomblé quanto o funk produzem, a partir de suas batidas graves, um território que possibilita a emergência de ritmos e corporalidades não hegemônicas, agregadas ao redor das fontes emissoras de som. Os bailes funk e o candomblé constituem, sonoramente, espaços-tempos que escapam tanto à regulamentação do ruído urbano quanto à normatização dos corpos, e talvez por isso seus festejos incomodem tanto determinados estratos da sociedade brasileira.
O baile funk não evoca diretamente a ancestralidade nem a força de divindades afro-diaspóricas, mas possui sua própria fruição de blocos de ancestralidades, mesmo que estas estejam sampleadas nas batidas do DJ.
Tento demonstrar como o som estabelece fronteiras invisíveis no tecido urbano, talvez até mais efetivas do que as próprias fronteiras geopolíticas, como nos mostra, por exemplo, a proliferação de sotaques e gírias que brotam para compor idiomas e ritmos menores dentro de uma língua maior, fazendo surgir ilhas e pequenos países no interior de um território-nação.
O surgimento desses espaços-tempos (terreiros e bailes funk) que desestabilizam a ordem vigente do controle - seja ela de gestos, sensualidade, crenças ou ‘bom gosto’ - segue-se uma perseguição não apenas policial aos músicos, praticantes, sacerdotes e dançarinos, mas também uma guerra sônica e ideológica para neutralizar as vibrações que nutrem e fazem vibrar esses espaços e os corpos que os percorrem. Ao emudecimento do som, segue-se um silenciamento dos fatos por parte de uma historiografia da dominação.
A potência do som que arrasta consigo um coletivo de corpos pode manifestar-se tanto de maneira centrífuga em relação à fonte emissora, como por exemplo, uma arma sônica que, emitindo frequências muito graves, é capaz de causar náuseas coletivas e dispersar multidões de manifestantes (Goodman 2012), quanto de maneira centrípeta em relação à fonte, como acontece entre as batidas graves das caixas de som e os corpos que se aglutinam ao redor dela para dançar num baile.
As frequências graves e subgraves preenchem o espaço, ocupam e produzem territórios, engendram espaços-tempos, ainda que de curta duração, sejam eles de controle ou liberação. Eis, para mim, a polivalência fundamental das ondas sonoras: apesar de insubstanciais, invisíveis e impalpáveis, apesar de estarem sempre se desfazendo no ar, essas ondas têm um poder e um peso efetivo sobre os corpos e os regimes que os regulam.
Lembremos que o tambor sempre se prestou à comunicação e resistência negra durante e após a diáspora africana na escravidão, tendo a música um papel fundamental no
desenvolvimento das lutas negras pela comunicação de informações, organização da consciência e teste ou articulação das formas de subjetividade exigidas pela atuação política, seja individual ou coletiva, defensiva ou transformadora (Gilroy 2012:93).
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